Há
dez anos, o jurista e professor da USP Dalmo Dallari publicou artigo que gerou
polêmica em que sustentava: "Gilmar Mendes no STF é a degradação do
judiciário brasileiro". Agora, ele reafirma e diz mais: "Há algo de
errado quando um ministro do supremo vive na mídia"Há dez anos, exatamente
em 8 de maio de 2002, a Folha de S. Paulo publicou um artigo que geraria grande
polêmica. Com o título “Degradação do Judiciário”, o artigo, escrito pelo
jurista e professor da Faculdade Direito da USP, Dalmo de Abreu Dallari, questionava
firmemente a indicação do nome de Gilmar Mendes para o Supremo Tribunal Federal
(STF). A
nomeação se daria dias depois, mesmo com as críticas fortes de
Dallari, ecoadas por muita gente da área e nos blogs e sites da época.
Desde
então, Mendes esteve no centro das atenções em inúmeras polêmicas. Em 2009, na
famosa e áspera discussão que teve em pleno plenário do tribunal com o colega
Joaquim Barbosa, Dallari, que conhece pessoalmente muitos ministros do STF (foi
professor de Ricardo Lewandowski, deu aulas a Cármen Lúcia e orientou Eros
Grau), comparou o fato a uma “briga de moleques de rua”: “Os dois poderiam
evitar o episódio, mas a culpa grande é do presidente do STF, Gilmar Mendes,
que mostra um exibicionismo exagerado, uma busca dos holofotes, da imprensa.
Além da vocação autoritária, que não é novidade.
Um
ano depois, em 2010, na véspera das eleições presidenciais, o Supremo se reunir
para julgar a exigência da apresentação de dois documentos para votar nas
eleições. O placar estava 7 a 0 quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista do
processo. O julgamento foi interrompido. Mais tarde, circulou a informação,
confirmada depois em reportagem da Folha de S. Paulo, de que a decisão de
Mendes foi tomada depois de conversar com o então candidato do PSDB, José
Serra, por telefone. Na época, Dallari não quis comentar sobre a conversa ou
não com o candidato tucano e suas implicações (“Como advogado, raciocino em
cima de provas”), mas contestou a atitude de Mendes: “Do ponto jurídico, é uma
decisão totalmente desprovida de fundamento. O pedido de vistas não tinha razão
jurídica alguma, não havia dúvida a ser dirimida”.
Mas
a maior polêmica é a atual, envolvendo o político mais popular do Brasil, o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acusado por Mendes de chantagem e
pressão ao STF. Em recente entrevista,
Dallari não deixa de reconhecer: “Eu não avisei?”
A
entrevista foi concedida ao portal 247. Confira abaixo alguns pontos cruciais:
STF
NA MÍDIA
“Eu
acho muito ruim para a imagem do Supremo que um de seus ministros fique tanto
tempo exposto na mídia, sempre em polêmicas. Não que eu considere bom ficar
enclausurado, pelo contrário. É interessante que você dê publicidade às ações
do STF, para a população ser melhor informado do processo de decisões no tribunal.
Mas há algo errado quando um ministro do Supremo vive na mídia, e sempre em
polêmicas.
VERDADE
OU MENTIRA?
“Não
posso fazer um julgamento categórico sobre o que disse o ministro Gilmar
Mendes. Não se sabe onde está a verdade. Se tivesse mais segurança quanto aos
fatos ocorridos poderia dizer melhor. Mas, de qualquer maneira, dá para afirmar
de cara duas coisas: a primeira é que não dá, definitivamente, para um ministro
do Supremo sair polemizando toda hora para a imprensa, e num nível que parece
confronto pessoal. É algo que não faz parte das funções de um ministro do
Supremo. A outra coisa é que as acusações de Gilmar são extremamente duvidosas.
Feitas com atraso e sem o mais básico, que é a confirmação da única testemunha.
Pelo contrário: o ministro Jobim (Nelson Jobim, que foi ministro de FHC, de
Lula e do próprio STF) negou o conteúdo do que foi denunciado.
PREVISÃO
“Não
avisei? Naquele artigo para a Folha, eu já mostrava, com fatos, os problemas
que o Judiciário brasileiro enfrentaria com o Gilmar Mendes no Supremo. Não há
surpresas, pelo menos para mim. Na época de sua nomeação, já havia informações,
por exemplo, de que ele contratou, como procurador-geral da República, pessoal
para seu cursinho de Direito. Um detalhe interessante é que o Gilmar Mendes
teve 14 votos contrários à sua nomeação para o STF. Isso quebrou uma tradição
de unanimidade que existia no Senado brasileiro. Enfim, ele não é,
definitivamente, uma personagem altamamente confiável a ponto de representar um
posto tão importante.
IMPLICAÇÕES
JURÍDICAS
“Primeiramente
é preciso lembrar que, fosse verdadeira a nova afirmação de Gilmar Mendes, se
tivesse realmente sido vítima de chantagem, o caminho natural seria uma
denúncia ao Ministério Público, imediatamente. Por que só agora? Dito isso,
cabem dúvidas da extensão realmente do que supostamente foi dito. Ainda que
Lula tenha feito referências ao mensalão, é duvidoso se isso teria tanta
implicação jurídica, pois parece ter sido numa conversa informal, feita na casa
de um amigo comum dos dois. Volto a frisar dois aspectos: é difícil determinar
com certeza, pois não há evidência nenhuma de que Gilmar Mendes diz a verdade,
apenas a sua palavra; e, tivesse a seriedade que alguns querem pintar, a
denúncia teria que ser feita na hora. Ou não é?
Leia
abaixo o artigo que Dalmo de Abreu Dallari publicou na Folha, em 8 de maio de
2002:
Degradação
do Judiciário
DALMO
DE ABREU DALLARI
Nenhum
Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um
Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a
Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e
corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos
constitucionais.
Sem
o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de
protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais
astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética.
Essas
considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e
reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de Direito, são
necessárias e oportunas em face da notícia de que o presidente da República,
com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação
para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira
declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao
Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade
jurídica.
Se
essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que
estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à
corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar
a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem
vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas
atribuições constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num
sistema democrático.
Segundo
vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma
grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o
completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de
seu mandato. Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do
atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao
presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha
afoiteza do presidente -pois a indicação foi noticiada antes que se
formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado está longe de preencher os
requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país.
É
oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a constitucionalidade das
leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção
da responsabilidade do presidente da República pela prática de ilegalidades e
corrupção.
É
importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo especializou-se
em “inventar” soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor
muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito
ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que
pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da
Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas.
Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma
tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando
Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais
recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso,
recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.
Medidas
desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral da União,
muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram fundamento para a
concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais, contra atos de
autoridades federais.
Indignado
com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos
pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com
sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio
judiciário”.
Obviamente
isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade,
o que ficou claramente expresso em artigo publicado no “Informe”, veículo de
divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de
2001). Num texto sereno e objetivo, significativamente intitulado “Manicômio
Judiciário” e assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que “não
são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral
da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”.
E
não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes,
toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto de conluio
corrupto entre advogados e juízes, sócios na “indústria de liminares”.
A
par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um problema
ético. Revelou a revista “Época” (22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia
Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto
Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos
proprietários- para que seus subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário
à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação
ilibada”, exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o
Supremo.
A
comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e
submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com
sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no
artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou “ação entre amigos”. É
assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem
constitucional democrática
http://www.pragmatismopolitico.com.br
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