terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Natureza do câncer está ligada à aleatoriedade de ser humano

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Diferentemente do Ebola, da gripe ou da pólio, o câncer é uma doença que vem de dentro – uma consequência de mutações que ocorrem inevitavelmente quando uma de nossas 50 trilhões de células se divide e copia seu DNA.
Alguns desses erros de impressão genéticos são causados por agentes externos, químicos ou biológicos – especialmente em partes do corpo que são mais expostas à destruição do mundo – a pele, os pulmões e o trato digestivo. Mas milhões a cada segundo ocorrem puramente por acaso – um mau funcionamento aleatório e espontâneo que pode ser o carcinógeno mais difundido de todos.
É uma verdade que incomoda nossa natureza mais profunda. Isso ficou claro no início desde mês quando um artigo da Science sobre o importante papel da "má sorte" no câncer causou um surto de desespero, ultraje e, por fim, descrença.
As reações mais intemperadas – mini-discursos no Twitter e comentários atropelados na internet – sugeriam que os autores, Cristian Tomasetti e Bert Vogelstein da Universidade Johns Hopkins, devem ser defensores das indústrias químicas ou do setor de alimentos processados. Na verdade, seu estudo foi financiado por fundações sem fins lucrativos para o câncer e bolsas dos Institutos Nacionais de Saúde. Na mente de algumas pessoas, isso era simplesmente parte da conspiração.
O que os psicólogos chamam de apofenia – a tendência humana de ver conexões e padrões que não existem de fato – dá origem a teorias da conspiração. Ela também atua, embora de uma forma mais branda, nas nossas percepções sobre o câncer e em nossa rejeição ao que é aleatório.
São necessárias várias mutações, em combinações específicas, para que uma célula irrompa num tumor maligno. A ideia da importância dos erros de cópia aleatórios é bastante difundida. O que há de novo no artigo é sua tentativa de medir esta má sorte biológica e como ela se compara com os dois outros cantos do triângulo do câncer: o ambiente e a hereditariedade – mutações que herdamos de nossos pais que podem dar início ao câncer.
A mistura dessas influências varia. Foi demonstrado que uma vida inteira de tabagismo pesado multiplica o risco de câncer de pulmão – a forma mais comum de tumor maligno no mundo – em cerca de 20 vezes, ou 2.000%. Mas isso é uma anomalia. Uma das maiores frustrações na prevenção do câncer tem sido a incapacidade de encontrar outros carcinógenos tão definitivos ou prejudiciais, especialmente nas quantidades diluídas em que eles atingem a maior parte das pessoas.
Para um punhado de cânceres, os agentes biológicos são importantes, como o papiloma vírus no caso do câncer de colo de útero e da H. Pylori no câncer de estômago. Em outro nível, inflações e desequilíbrios hormonais, como aqueles associados à obesidade e à diabetes, podem levar as células a se multiplicar com mais frequência, aumentando a chance de mutações causais e acidentais.
Por fim, a hereditariedade – como as mutações BRCA envolvidas em alguns cânceres de mama – podem ter um efeito profundo em casos individuais. Mas a herança parece estar envolvida em apenas 5% a 10% de todos os cânceres.
O que isso deixa é um grande espaço para mutações aleatórias e espontâneas – aquelas que acontecem simplesmente por causa do desgaste microscópico da vida.
Isso não é motivo para resignação. As estimativas costumam dizer que cerca 40% dos cânceres são preveníveis. Mas isso significa que cerca de 60% não o são.
Para ter uma ideia desse equilíbrio, os autores observaram células-tronco – aquelas que são capazes de se dividir e se renovar infinitamente. Primeiro, eles estimaram o número dessas células em tecidos diferentes do corpo e quantas vezes elas copiariam a si mesmas durante o tempo de vida de um ser humano. Quanto maior a contagem, maior a vulnerabilidade a mutações.
Então eles compararam esse número com a probabilidade de que um tecido desenvolva um tumor maligno. O resultado foi uma correlação alta, uma curva acentuada que sugere que dois terços da diferença na susceptibilidade ao câncer pode ser explicada por erros espontâneos.
Os tecidos que se desviam dessa relação, contraindo câncer a uma taxa mais alta, presumivelmente sofreram um desvio forte por causa de alguma outra coisa.
Para os cânceres de ossos e do cérebro, por exemplo, a aleatoriedade parece ser a regra. Mas no outro lado do espectro estão aqueles que são mais "determinísticos" - como câncer de pulmão e carcinoma basocelular, um tumor maligno de pele normalmente inofensivo no qual a luz do sol desempenha um papel decisivo.
Os cânceres de cólon mais comuns estão próximos do meio do espectro. Mutações aleatórias são importantes, mas o ambiente – como os carcinógenos eliminados na digestão – parecem ter uma influência um pouco maior.
Ainda há ambiguidades para resolver. A dinâmica celular de dois dos cânceres mais comuns, o de mama e o de próstata, não está certa o suficiente para ser incluída na análise. Mas independentemente de como eles possam influenciar o resultado, as mutações aleatórias continuarão sendo um motivo dominante.
É sempre possível que o que chamamos de aleatoriedade acabe se mostrando como uma complexidade disfarçada. Algumas mutações atribuídas ao acaso poderão eventualmente ser atribuídas a causas sutis.
Ao longo dos anos, contudo, a balança parece estar pendendo para o outro lado, com a descoberta de que alguns agentes há muito suspeitos, como a gordura dos alimentos e adoçantes artificiais, podem não ser tão poderosos no fim das contas.
Apesar de toda nossa agonia, pode ser libertador aceitar e até mesmo abraçar o papel poderoso que a sorte desempenha na biologia da vida e da morte. A variação aleatória, afinal, é o motor da evolução.
Por causa das mutações espontâneas em células germinativas – espermatozoide e óvulo – cada geração de nossa espécie é sutilmente diferente. Algumas das variações conferem uma vantagem e outras, uma vulnerabilidade. Elas são peneiradas pela seleção natural, e assim nos nos adaptamos e evoluímos.
No ecossistema do corpo, as células cancerígenas passam por uma versão muito mais rápida desse processo. A mais adaptada delas desenvolve armas para invadir e destruir seu entorno, como um reflexo fractal do que os seres humanos fazem em seu mundo.
A evolução dos nossos cérebros, tão afeita a encontrar padrões, deu-nos uma vantagem – descobrir cânceres que podem ser evitados ou, quando isso fracassa, identificá-los e retirá-los antes de sua tempestade fatal. Mas por mais que tentemos, jamais poderemos controlar totalmente uma condição tão profundamente enraizada nos altos e baixos da vida. (The New York Times)

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