segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Professor pela manhã e Gari das 16 às 22 horas

http://www.marceloabdon.com.br/

Por *Cláudia Santa Rosa
Estava com um outro texto em andamento, quando, na manhã de hoje, uma conversa pelo WhatsApp me fez mudar o tema. Eu sou assim mesmo, tocada pelas dores do
mundo, da educação. Às vezes fico a me perguntar se realmente sei o que quero. Deus que me perdoe, mas a minha dispersão beira o caos e as divagações pedagógicas e sociais são perigosíssimas, especialmente quando encontro cúmplices, ou seja, outras gentes afetadas pelo desrespeito que ronda a escola e o magistério.
Como disse, cheguei a escrever quatro parágrafos, movida pela informação de um colega professor, anunciada durante a nossa reunião pedagógica da última sexta-feira, na Escola Estadual Hegésippo Reis, de que ele, o professor, serviria à Justiça Eleitoral, no próximo pleito e, em decorrência, por direito, seria dispensado das atividades laborais nos dois dias seguintes. Felizmente alertou: não se preocupem, pois virei trabalhar normalmente. Expressei a minha indignação, menos por aquele caso pontual e mais pelos muitos professores, espalhados pelo Rio Grande do Norte, que, certamente, estarão, por dois dias, afastados das salas de aula, gerando irregularidade no funcionamento das escolas e subtraindo o direito dos estudantes.
A minha intenção era, por meio do artigo, refletir com os homens e as mulheres sensatas da Justiça Eleitoral sobre a importância de não serem convocados docentes para o trabalho no dia da eleição, assim como é preciso que se encontre uma forma dos prédios escolares, cedidos para funcionamento de seções eleitorais, estarem limpos na manhã seguinte ao pleito, de modo a não prejudicar o dia letivo. Fico incomodada, sobremaneira, com a fragilidade da escola. É impressionante como muitos se servem dessa instituição e como pouco se cuida para que ela sirva, decentemente, a quem de direito: às crianças e aos jovens.
Dito isso, passarei a tratar do caso do Professor que pela manhã atua numa escola e das 16 às 22 horas é gari, recolhe lixo nas ruas. Uma colega professora, companheira de trabalho na Hegésippo Reis, assim descreveu:
- Bom dia, Cláudia!
- Estava pensando aqui...
- Conheço um professor do Estado que também é gari.
- Conversando com ele ontem... Sua frase me chamou atenção: “sou gari porque, infelizmente, não posso me sustentar e sustentar a minha família com o salário de professor.”
- E mais... Ele continuou: “Ganho mais como gari do que como professor.”
- Acho que daria uma reportagem de capa de um jornal.
- As pessoas precisam saber disso.
Li embalada numa tristeza danada, numa mistura de emoção e indignação, não que o trabalho do gari não seja digno, mas pelo fato de, indiscutivelmente, não ser atividade para um professor, que se espera seja um intelectual que tem em suas mãos instrumentos capazes de ajudar a transformar o mundo. Indaguei: - Ele faz as duas coisas? A minha interlocutora respondeu:
- Sim, é gari a noite, das 16 até às 22h e pela manhã dá aula. É professor do 3º ano numa escola estadual aqui de Natal. Faz a formação do PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) comigo.
Perguntei se ele ingressou pela via do último concurso público. Ela respondeu:
- Sim, o mesmo que eu fiz. Menina, eu estou encantada com a história dele. Desde o ano passado faço PNAIC com ele. Só este ano ele falou abertamente sobre isso. Ele falou que antes tinha vergonha, mas que agora até os alunos dele já sabem. Contou que quando as amiguinhas da filha dele vão estudar na casa deles, a garota pede para ele esconder a sua farda de gari.
- Ahhh, Cláudia! Ele é massa, sabe? Diz que ama ser professor e que vai morrer professor. Não pensa em sair de sala de aula.
Ufa! O que dizer?
Eis o que fizeram com o magistério. Uma perversidade! É indigno o tratamento dispensado aos professores brasileiros e em estados como o Rio Grande do Norte, é vergonhoso. A desfaçatez com que certos gestores discursam que a educação é prioridade e praticam o contrário, a mim causa ojeriza. São os mesmos cínicos que respaldam todo tipo de regalias de outras categorias já muito bem remuneradas, obrigada!
Temos professores mal remunerados, desprestigiados, desmotivados, sobrecarregados com dois ou três turnos de trabalho em lugares diferentes, envergonhados da própria sorte e de dizerem que são professores, doentes, cansados, privados de acesso contínuo aos bens culturais que são essenciais ao trabalho intelectual. Diante de tudo isso, as escolas estão cheias de servidores medianos e até medíocres, em muitos casos não por que querem ser assim, e sim porque é o que podem oferecer. Em todas elas também há, felizmente, alguns poucos idealistas, competentes, éticos e tocados pela causa da educação libertadora.
Não é de se estranhar o desempenho pífio que alcançamos, sucessivamente, nos indicadores oficiais.
Respeitemos os professores!
*Professora, especialista em Psicopedagogia, Mestre e Doutora em Educação. Diretora Executiva do Instituto de Desenvolvimento da Educação (IDE) e coordenadora pedagógica do Casa de Saberes, projeto político-pedagógico da Escola Estadual Hegésippo Reis. (educadora@claudiasantarosa.com)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão avaliados antes de serem liberados

Governadora anuncia edital de licitação para restauração de estradas no interior do RN

A governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra ( PT ), anunciou que o estado vai publicar, nesta terça-feira (26), o primeiro edital ...