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Paulo Giandalia/AE
"'As elites estão de mãos dadas com a corrupção', diz a ministra Eliana Calmon"
Mesmo com horário marcado, a fila no gabinete para falar com Eliana Calmon chega a durar três horas, como na tarde em que ela recebeu a coluna, semana passada, em Brasília. É um entra e sai vertiginoso de gente com denúncias contra magistrados. E as queixas vão muito além da corrupção. Dia desses, chegou pedido vindo de uma pequena cidade do Amazonas. Queriam o afastamento de uma juíza porque ela amava dois coronéis da comarca ao mesmo tempo e o caso assanhava a população...
Na sala de espera de seu QG, no prédio do STF, há leituras variadas: Anuário da Justiça, Vogue e o livro Resp - Receitas Especiais, de autoria da própria ministra. Na capa da obra está colado um aviso: 'não levar'. Se um fã de culinária se interessar, um funcionário do gabinete logo avisa como adquirir um exemplar: 'Aqui mesmo, por R$ 30, com direito a dedicatória'. Aqui, os principais trechos da conversa:
Sua personalidade forte assusta as pessoas?
Assusta. E isso é ruim porque as pessoas não me veem como uma pessoa que tem fragilidades, elas me veem sempre como alguém que pode dar guarida, mas não pode fraquejar.
Tem muitas fragilidades?
Ah, lógico. Todo mundo tem. No final do ano fiquei muito mal quando vi as associações todas reunidas entrarem com uma representação criminal contra mim, duas liminares no Supremo, barrando minha atividade, dizendo que eu era criminosa e que eu estava infringindo a Constituição, estava quebrando sigilo, vazando informações. O dia da votação (que ratificou os poderes de investigação do CNJ) foi igual a final de Copa do Mundo. Todo mundo tenso. Fui tomada por uma enxaqueca tão grande que corri para a casa, tomei remédio e fiquei no quarto escuro, com o olho miudinho.
Anda com segurança?
Não. E eu vou acreditar nessa segurança? Sou mais meu salto de sapato. Gosto de dirigir meu próprio carro. Muitas vezes um juiz quer um segurança para ser diferente. Quer uma mordomia para mostrar aos outros que ele é importante. Quem é autoridade e tem o poder de dar e tirar a liberdade tem que ser simples. Isso tudo termina sendo um pouco de doença profissional, porque quem dá a última palavra sempre fica prepotente. Por isso que digo que nós, da magistratura, tínhamos de investir na formação adequada dos juízes. Precisamos ver essa vaidade como uma doença profissional, onde você tem que se cuidar no dia a dia.
Mas quando você decide ser juiz, você já se dá a autoridade do certo e do errado. Já é complicado a princípio, não?
Então você tem que ter uma boa formação psicológica. Uma pessoa que não é analisada não deveria ser juiz.
Qual é o maior inimigo do Brasil?
A corrupção. As elites estão de mãos dadas com a corrupção, alguns porque realmente fazem parte de uma sociedade corrupta. Outros porque nem têm noção de que estão contribuindo para a corrupção, como o corporativismo.
Conversou com Dilma na época do quase esvaziamento dos poderes do CNJ?
Nunca. Não temos relação nenhuma. Eu a conheço de fotografia, nunca a vi pessoalmente. Ela deu declarações intramuros, nunca a mim.
Sentiu falta de respaldo?
Não. Sou um animal jurídico.
Já disse ser um colibri.
Digo brincando. Não sou um colibri, porque seria uma pessoa delicada. Não passo isso. Sou muito mais uma loba (risos).
Gostaria de ter sido indicada ao STF se sua idade permitisse?
Não, não seria feliz lá. É uma Casa muito política, contida, onde se fala pouco. É uma Casa de muitas vaidades. Não tenho o perfil. Sou como sou.
Falava-se muito que o ACM mandava na Justiça da Bahia. Tem fundamento?
Total. Ele mandava em tudo na Bahia, inclusive nos desembargadores, menos da Justiça Federal. O presidente do Tribunal Eleitoral chegava a dizer: 'O cabeça branca mandou decidir dessa forma'. Isso eu vivi, briguei e fiquei isolada.
Como sobreviveu?
Como tenho sobrevivido até hoje. Sou a marca dos desafios, né? Riam de mim. Mas sempre fui 'brigona'.
De onde vem esse jeito?
Meu pai nunca baixou a cabeça e me criou absolutamente independente. Com 13 anos eu tinha a chave de casa. Com 16, ganhei um carro. Tinha motorista e eu dava umas 'direçõezinhas'.
Como era quando criança?
Estudiosa, recitava poesia. Meu pai era um pequeno empresário, minha mãe, dona de casa, mas de uma família boa. Para ela, eu deveria ser vaidosa, coquete, tinha que namorar mais, me vestir bem. Sou a 'antifilha'. Para fazer festa de 15 anos foi um inferno. Achava uma porcaria. Valsa? Um horror. Eu era bandeirante e, às vésperas da festa, fui acampar. Voltei cheia de picada de mosquito, breada de sol. Foi a festa da minha mãe. Por mim, nem estaria presente.
E o casamento?
Outro inferno para convencer minha mãe, que queria um casamento maravilhoso. Cogitou até aquele cruzamento de espadas. Mas nunca, jamais, em tempo algum iria me submeter a esse ridículo. Casei numa terça, com almoço simples. Tinha 24 anos, já formada. Meu marido era oficial de Marinha. Era intelectual.
Foi uma criança insubordinada?
Meus pais sofreram, eu era ousada, desaforada, voluntariosa, só fazia o que queria. Fui uma adolescente à frente da época. Isso me ajudou, pois não virei uma moça medíocre. Tinha tudo para ser casadoura. Esse meu jeito fez com que eu desabrochasse, enfrentasse uma mãe coquete, uma sociedade restritiva. E fez com que eu repensasse um casamento.
Casada com militar, quem mandava em casa?
Ele. Ah, não há quem consiga mandar mais que um militar (risos). Fiquei casada por 20 anos e tinha uma enxaqueca terrível. Fiz diversos tratamentos. Hoje eu digo que fiquei boa, mas não posso receitar o remédio: quando eu me separei, a enxaqueca foi embora. Impressionante. Depois do marido, só quem conseguiu me deixar com enxaqueca foi o Supremo Tribunal Federal. Mas meu ex foi um grande amigo. Sempre me entendeu, deixou que eu estudasse e trabalhasse. Eu fiquei casada por dez anos sem ter filho. Até que ele disse: 'Você pensa que casamento é bolsa de estudos? Não é, quero meu filho'. Eu não queria, sou da geração de Simone de Beauvoir. Ela dizia que a servidão da mulher é a maternidade e eu acreditava. Hoje tenho uma gratidão a ele, pois me tornei completa.
Foi dura como mãe?
Duríssima. Por exemplo, ele nunca usou grife, só C&A. Eu queria uma atitude classe média. Cresceu gente de bem. Brincávamos muito, ele se sentava junto de mim e enfiava o dedo no meu braço, brincando de dar injeção. Aí eu disse: 'No dia em que você passar no vestibular, vou ficar de calcinha e sutiã para você me dar injeção' (risos). O danado passou em primeiro lugar.
Como é a sogra, Eliana?
Extremamente contida. Porque tenho gênio muito forte e ela também tem - aliás ela foi o maior tributo que meu filho podia pagar a mim. Ele escolheu uma mulher igualzinha.
E como avó?
É uma perdição, aí é outra Eliana. Meu neto tem dois anos e meio. Meu filho comentou: 'Minha mãe, estou preocupado, imagina que ele está se jogando no chão'. Eu disse: 'Tem que pôr limites, façam isso rapidamente. E não esperem minha ajuda, porque estou aqui para fazer todas as vontades dele'(risos). Ele fica: 'Vovó, vovó'. Vai no meu closet, bota todas as minhas pulseiras, os colares. Entra para tomar banho de banheira e eu entro junto, boto sais de banho e ele fica assim (passando sais pelo corpo). Adora. Quando estou cozinhando, ele me ajuda, deixo ele mexer.
A senhora é uma mulher à frente da sua época. Cozinhar já não teve um significado muito ligado à dona de casa?
Pensei nisso. Por que as mulheres resistem tanto? Acho que é até uma forma atávica de querer se libertar. Elas só tinham vez na procriação e na cozinha. Lá eram as donas do pedaço, onde o homem não apitava. Então quem se libertou não quer mais isso. Mas quando a cozinha deixou de ser um subjugo? Quando os homens chegaram neste cômodo. Cozinhar é uma química. Fala-se que, quando um começa a mexer a panela, o outro não pode pôr a mão. Já tive essa experiência, e não pode mesmo. Quando desanda, não há força humana que faça voltar ao ponto.
Em termos de religião...
Agnóstica. Eu acredito na energia, porque acho que isso não é metafísico, é físico e depois acabou. Sem crise existencial. Eu sou uma mulher analisada. Fiz terapia uns cinco anos.
Depois que separou?
Não, foi para separar (risos).
Não casou mais?
Não. Tenho uma amiga desembargadora que me disse: 'Pare com essa cafonice de dizer 'meu ex-marido', pois significa que só teve um. Tem que dizer 'meu primeiro, meu segundo...' Mas não casaria de novo.
Namora?
Pouco. Para uma mulher como eu é difícil. Tenho uma personalidade muito forte, aí os homens que também têm não admiram, e homem fraco também não quero. Outro dia apareceu um advogado bem sucedido e disse ao meu motorista: 'O senhor sabe que vou casar com sua chefe?'. Quando o motorista me contou, perguntei: 'Eu quero saber, sr. Ferreira, o que o senhor acha?'. Ele disse: 'Ele não aguenta, não' (gargalhadas). Eu achei ótimo. Outro dia eu fui a um tarólogo, de tanto meu chefe de gabinete me atentar, chegou a pagar a consulta, disse que era o meu presente de aniversário. Aí, perguntei: 'Senhor Paulo, eu quero ver aí se vou me casar novamente'. Ele botou as cartas e disse: 'Ah, ministra, vai aparecer um homem bem corajoso' (gargalhadas). Eu brinco com o pessoal: 'Cadê o homem corajoso que até agora não apareceu?'.
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