quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Marighella, um carbonário baiano

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“Marighella — O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, de Mário Magalhães, percorre a vida, a obra e a militância do controverso estrategista da guerrilha no Brasil, Carlos Marighella. A biografia também é um livro sobre a história política do mundo entre as décadas de 1930 e 1960
Carlos Marighella
Renato Dias
Especial para o Jornal Opção

“A senhora tem que chamar a polícia!” Assim uma vizinha com so­taque baiano orientou Clara Charf após a sua casa ser invadida, a porta da sala arrombada e os invasores  se retirarem. “‘Mas foi a po­lícia que acabou de fazer isso’, respondeu a vítima.”
Agentes do Estado estavam atrás de seu marido, o comunista Carlos Marighella. Uma cena constante nos 37 anos de militância revolucionária do baiano. O diálogo está registrado em “Marighella — O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”  (Com­panhia das Letras, 732 páginas), do jornalista Mário Magalhães. A obra revisita a história do Brasil e da América Latina no século 20.

Filho de Augusto Marighella, italiano que desembarcou no Brasil em  1907 e era dono de um rosto que parecia esculpido, com Maria Rita dos Santos, baiana filha de escravos que nascera nove dias após a Lei Áurea, o mulato Carlos Marighella veio ao mundo em 5 de dezembro de 1911.

O garoto devorava livros. Au­gusto Marighella, em vez de introduzi-lo nos macetes da chave de fenda, preferiu distanciá-lo da graxa, do mundo das oficinas. Começou a gostar de futebol e virou torcedor do Vitória (BA). Estudou no Gi­násio da Bahia e foi aprovado no vestibular de 1931 para o curso de En­genharia Civil.

O seu batismo político ocorreu em 1932. Acabou preso. “Sem ser indiciado, Marighella deixara a penitenciária em 24 de agosto de 1932”, registra Mário Magalhães.  Louco por um rabo de saia, não fumava nem consumia álcool. Por motivação política, recebeu uma pena, em 8 de maio de 1938, de não poder pôs os pés na Escola Politécnica da Bahia por três meses. Marighella já participava da Federação Vermelha dos Estudantes e da Juventude Comunista.

O mulato baiano havia se convertido ao Partido Comunista do Brasil, uma seção do Komintern, a terceira internacional comunista criada em 1919 por Lênin e pelo ucraniano Trotski. O autor a define como um clube mundial dos revolucionários que lutavam contra o capitalismo e pela revolução socialista. Marighella deixou a sala de aula para nunca mais voltar. Seu pai abriu um buraco no quintal de casa para enterrar os livros subversivos do filho.

“Marighella tinha 13 anos quando a passagem de Prestes pela caatinga baiana, noticiada pelos jornais, fascinou-o. Intrigou-o a engenhosidade da guerrilha a fustigar, driblar e derrotar destacamentos mais numerosos.”

Marighella integrou o comitê regional do PCB baiano. O líder do PCB e da Aliança Nacional Li­bertadora, em 1935, era Luiz Car­los Prestes, cuja biografia sairá em livro em 2013 assinada pelo historiador Daniel Aarão Reis Filho. Em outubro de 1935, embarcou para o Rio de Janeiro. Não sabia que Prestes, o argentino Rodolfo Ghioldi e o alemão Arthur Ewert tentariam comandar uma revolução no Brasil. Depois da revolução de outubro de 1917 na Rús­sia, nenhuma insurreição proletária triunfaria antes da Segunda Guerra Mundial.

“Marighella ignorava os planos para a madrugada de 27 de novembro de 1935, não conspirou para o levante, manteve-se a léguas das zonas sul (3º RI) e oeste (Escola de Aviação), vivenciou os entreveros pelos jornais que se atualizavam em edições nervosas e sucessivas e torceu apaixonadamente pelos revoltosos”, relata o biógrafo.  Mas a revolução  fracassou e o que se viu foi uma violenta caça às bruxas comunistas.

O PCB estimou, em 1936, em 15 mil o número de encarcerados por motivações políticas. Já Filinto Müller, chefe da polícia política, anunciou 7.056 apenas na capital.  Prestes e sua mulher, Olga Benario, foram parar atrás das grades. Rodolfo Ghioldi também. Após violentas sessões de tortura, Ewert, ex-deputado comunista do Rei­chstag, ficou louco.

Revolucionário profissional, Marighella terminou preso. Apa­nhou muito. “Não houve um só dia que não batessem em Mari­ghella, com ou sem depoimentos formais.” Em 27 de julho de 1937 Ma­righella deixou a prisão.  Mas em 25 de agosto, o Tribunal de Segurança Na­cional (TSN) condenou-o por unanimidade à pena de dois anos e seis meses de reclusão. “Àquela altura, estava longe”, conta Mário Ma­galhães. Ma­righella vai para São Paulo.

Reconstruir o PCB era a sua missão. Não havia nenhuma estrutura. Até fome ele pas­sava. Marighella chegou como secretário de propaganda do partido e em pouco tempo virou o número um do Estado. Fiel à ortodoxia stalinista, ele coordenou a produção de panfletos contra Trot­ski. Em defesa do “guia genial dos povos — Stálin”.

Paixões e Goiás

Nova queda em maio de 1939. “Caíram 22 militantes, dos quais dezenove seriam denunciados no TSN. O Comitê Regional foi desarticulado, e um ano e meio de trabalho se desfez. Marighella, 27 anos, foi levado para a delegacia.” Com base no decreto-lei 431, de 1938, pegou cinco anos de reclusão. “Foi a punição máxima do grupo.” Liberdade somente no segundo semestre de 1945. Em­barcou em 1940 para Fer­nando de Noronha.

Lá os condenados estavam em dois grupos separados: 180 militantes de esquerda e 90 integralistas. Eles não se misturavam. Marighella jogava vôlei, mas gostava mesmo era de futebol. A sua “bicuda”  dava medo nos adversários. Exibia mais força do que técnica dentro das quatro linhas. O dirigente comunista aprendeu a cultivar verduras e legumes e se tornou pescador. O baiano dava aulas de Matemática e Por­tuguês aos camaradas.

Na cadeia, Marighella desprezava o ex-secretário-geral do PCB Miranda, cuja mulher foi assassinada, aos 21 anos, por estrangulamento a mando do partido por suposta colaboração com a repressão política. Contra ela não se provou nada. Sectário, Mari­ghella mandou recado de que não reconhecia a 2ª Conferência Nacional do PCB, realizada de 27 a 30 de agosto de 1943, na serra da Mantiqueira.  O fórum consagrou o apoio a Getúlio.

Após cinco anos, dez meses e 23 dias preso, Marighella foi libertado. Assume cargo no Comitê Central, em agosto. Can­didato comunista a deputado federal pela Bahia, foi eleito com 5.187 votos. O partido elegeu 14 deputados e um senador, Luiz Carlos Prestes.  O baiano tornou-se o secretário da bancada e compôs a mesa diretiva, mais conhecida como comissão de polícia. Ele nem via a cor do seu salário: ficava com apenas 8% dele.

O mulato casou-se com Elza de Sento Sé, com quem teve seu único filho: Carlinhos Marighella, que nasceu no mesmo dia da avó Maria Rita.  Em 7 de maio de 1947 o PCB é colocado na clandestinidade. “Por três a dois, o TSE empurrou o PCB para os subterrâneos.” Em 7 de janeiro de 1948, por 169 a 74, os mandatos comunistas foram cassados no Congresso Nacional, no Rio.

Louco por mulheres, Marighella se encantou por uma aeromoça da Aerovias Brasil, uma jovem judia radicada em Recife, loira de olhos azuis: Clara Charf.  Começaram a namorar. “Passaram a se tratar na intimidade como Lobinho e Cha­peuzinho.” Ele executava também tarefas domésticas. Com o sectarismo do Manifesto de Agosto do PCB em 1950, os comunistas dão tiros em Porecatu, Paraná; e em Trombas e Formoso, Goiás. Ma­righella vibra.

Três anos depois, João Saldanha foi o pombo-correio  que transmitiu as instruções de Marighella aos sindicalistas do PCB numa greve, em São Paulo. O líder comunista encantou-se com a China e chorou com a revelações sobre os crimes de Stálin, a quem chamava “nosso estremecido guia, mestre, educador e pai” e “o maior benfeitor da humanidade”. Mário Magalhães afirma que à época Marighella procurou ajuda psiquiátrica.

Oxóssi e materialismo

Com a renúncia de Jânio Qua­dros, em 1961, Mari­ghella corria o risco de ser preso novamente. Em 1962, sob os olhares de Carlos Lacerda, um ex-Aliança Nacional Libertadora, discursou no enterro de Cândido Portinari.

No mesmo ano, João Amazonas, Pedro Pomar, Diógenes Arruda e Maurício Grabois fundam o PC do B. Com a ascensão de Jango, Mari­ghella queixava-se da subordinação do partido ao presidente. “Mesmo assim, mantinha conexões azeitadas com a cozinha do Planalto.” Os seus interlocutores eram Darcy Ribeiro e Raul Ryff. Em 1964 os comunistas tinham 55 mil militantes e simpatizantes.

Com a crise de março de 1964, Prestes disse que, “se a reação levantar a cabeça, nós a cortaremos de imediato”. Não houve nada disso e fardados e civis derrubaram Jango em uma noite que durou 21 anos. Indignado, Marighella afirmou ter se cansado de Prestes, o cavaleiro da esperança, “a quem se referia como profeta do que já passou”.  Consagrado filho de Oxóssi em uma cerimônia religiosa, o mulato converteu-se à liturgia de Fidel Castro e Che Guevara.

Por rejeitar conspirações com cheiro de pólvora, o PCB boicotou a Conferência da Olas, em 31 de julho de 1967. Marighella, não. Ele se hospedou no Habana Hilton. Afinal, o dever de todo revolucionário é fazer a revolução. O Comitê Central do PCB telegrafou aos cubanos desautorizando-o. O comunista dissidente retrucou:  “Não tenho que pedir licença para praticar atos revolucionários”.

Em 8 de outubro de 1967 morre Che Guevara. Marighella ainda está em Cuba. O projeto de exportação da revolução sofre um duro golpe. Acusado de ter virado um “individualista pequeno burguês”, ele é expulso do partido em setembro, posição que é ratificada em dezembro no 6º Congresso. Mais seis vão para a guilhotina interna: Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, Jover Telles e Miguel Batista. O ex-estudante de Engenharia ficou 33 anos no partido. Ele retorna ao Brasil pela Guiana e depois mergulhou na região norte.

Dez mil comunistas deixam o PCB, segundo Moisés Vinhas. 6 mil com Marighella, aponta Reinaldo Guarany. Nasceu o Agrupamento Comunista, que rompe com dogmas, despreza a fórmula leninista de formação de partidos e opera com o conceito teórico de que a ação faz a vanguarda. Glauber Rocha abençoa o conterrâneo. Assim como o cineasta francês Jean-Luc Godard. Jean-Paul Sartre, à época maoísta, encanta-se com suas ideias. O pintor catalão Jean Miró fez doações aos revolucionários brasileiros.

Em 1º de julho de 1968, de armas nas mãos, parte para o pau, em uma agência do Banco Leme Ferreira: “Isto é um assalto! Todos de mãos para cima! O guer­rilheiro emendou ainda: ‘Quem sair leva bala’!”.

Sem disparar um tiro, os guerrilheiros faturaram para a guerrilha 23 mil cruzeiros novos, 124 mil reais atualizados. Marighella estava com 56 anos, seis meses e 27 dias de vida. Até assalto ao trem pagador fizeram. Este com a participação de Aloysio Nunes Ferreira, atual senador do PSDB (SP). Mas o seu sonho era deflagrar a guerrilha rural: Goiás era considerado uma área estratégica tanto para a ALN, como para o PC do B e a VAR-Palmares. “Num triângulo cujos vértices eram Formosa, Niquelândia e Brasília.” Nerópolis fazia parte do mapa também.

Com tática ecumênica, incorporou frades dominicanos à ALN. Como era previsível, a repressão infiltrou-se na organização. Mário Magalhães cita dois: o professor de Física José Tarcísio Coelho e o italiano Alessandro Malavasi, que colaborava com a CIA. Marighella envia militantes para fazer treinamento de guerrilha na ilha de Fidel Castro. Sob a orientação de José Wilson Lessa Sabag, irradia um mensagem pela Rádio Nacional.

Lessa Sabag era namorado de Maria Augusta Thomaz, estudante de Filosofia da PUC (SP), que sequestraria com uma bomba no colo, em 4 de no­vembro de 1969, em Buenos Aires, um avião da Varig, desviaria-o para Cuba, abriria uma dissidência na ALN e ajudaria a fundar o Molipo. Mais: retornaria clandestinamente ao Brasil, soltaria bomba na Esso, atacaria o Consulado da Bolívia, seria baleada e tentaria deflagrar a guerrilha rural sonhada por Marighella em Goiás. A sua história é relatada no livro “Luta Armada/ALN-Molipo — As Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz”.

Após cobrir pontos disfarçado com peruca, protagonizar ações armadas e de expropriação, Marighella vira o inimigo público número um da ditadura civil-militar. Ele lança um minimanual do guerrilheiro urbano. Preto no branco: acha tempo para conceder entrevista à revista francesa “Front”. O jornalista era o belga Conrad Detrez. Pego de surpresa pela captura e não sequestro, como define Daniel Aarão Reis Filho, do embaixador dos EUA no Brasil Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, fica irado.

No rastro da repressão pós-soltura de Burke Elbrick, caem o GTA e o GTB da ALN. Co­mandante da operação, Virgílio Gomes da Silva torna-se o primeiro desaparecido político do País. Era o nono morto da ALN. A repressão estava desde 1968 na cola da ALN, descobrira as ligações com os dominicanos, ativos e presos no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP).

Em 4 de novembro, no Pa­caembu, o Santos de Pelé programava para vencer o Co­rinthians de Rivellino, time de coração de Marighella. Um “ponto” estava marcado. O mulato baiano não sabia que eles estavam presos e compareceu ao encontro, sem ser escoltado pelo grupo de fogo da ALN. Acabou executado. A repressão, que podia prendê-lo e julgá-lo, agora exibia seu cadáver e desmoralizava a Igreja Católica. Antônio Flávio, que ficou de buscá-lo após o ponto, ouviu um senhora dizer: “Mataram o Marighella!”. Ele se retirou às pressas para seu aparelho.

Lá encontrou Clara Charf e lhe perguntou: “Quer tomar um conhaque?” Nada precisou acrescentar. Clara Charf desabou em prantos: “Mataram o menino. Acabou tudo! Acabou tudo”.

Renato Dias, jornalista e sociólogo, é autor de “Luta Armada/ALN-Molipo — As Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz”.

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