Por interino
Foto: Cléber Junior/Agência O Globo
Em uma carta sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes, no dia 14 de março, o delegado Brenno Carnevale, atualmente lotado no setor de inteligência da Polícia Civil, faz um desabafo sobre a precariedade das
condições de trabalho na Divisão de Homicídios, onde o caso é investigado. Em um texto emocionado, ele descreve as dificuldades para se elucidar os crimes enfrentadas pelos policiais envolvidos na investigação de centenas de homicídios no estado. Além da carência material, que atingem até os trabalhos de perícia, ele também faz críticas à intervenção federal na segurança pública. Os policiais da DH, de acordo com ele, se veem hoje diante de uma verdadeira escolha de Sofia com tantos casos para serem investigados e a falta quase absoluta de recursos humanos e materiais da unidade especializada e da polícia como um todo.
O delegado lembra que a solução do caso da vereadora “pressupõe a paralisação de uma infinidade de investigações de outras mortes, pretas e brancas, ricas e pobres, todas covardes”.”Escolha de Sofia”, resume.Quando entrou para a Polícia Civil do Rio, há pouco mais de quatro anos, Brenno Carnevale, agora com 28 anos, ganhou o título de mais novo delegado do país.
O jovem policial vinha de uma carreira acadêmica promissora. Formado com ótimas notas em Direito na PUC-RJ, com foco na área penal, teve desempenho exemplar também na pós- graduação em Segurança Pública, concluída na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Bagagem que o credenciou para assumir um posto na Divisão de Homicídios (DH). Ele trabalhou dois anos na DH da Baixada Fluminense até ser transferido para a DH Capital.
Ali, durante mais de dois anos, Carnevale participou de centenas de investigações, entre elas, a do assassinato da menina Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, baleada durante uma aula de educação física dentro da Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, no dia 30 de março de 2017. Carnevale coordenou o trabalho de uma equipe de agentes que culminou com o indiciamento do policial militar Fábio de Barros Dias, do 41º BPM (Irajá), por homicídio culposo. Antes de chegar à DH, o delegado teve passagens rápidas pelas delegacias da Tijuca (19ª DP), Catete (9ª DP) e Botafogo (10ª DP).
Confira a íntegra do desabafo do delegado:
“Carta a Marielle Franco”
“Marielle, durante quatro anos ininterruptos de minha vida estive diretamente envolvido em investigações de mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro. Acumulo em meu coração ardentes cicatrizes que me fazem lembrar mães, pais, filhos, irmãos, maridos, esposas. Todos vitimados pela maldade humana. Foram muitas madrugadas sem repouso. Muitas lágrimas na penumbra da folga. Assisti a muitos sorrisos desmancharem-se diante da morte. Ouvi gargantas secarem de tantos gritos de dor ao verem de perto a fragilidade do ser e deixar de ser humano.
“Carregava em meus ombros a pesada esperança do sucesso das investigações, afinal, meu trabalho representava o horizonte pós-tempestade para as famílias aviltadas pela violência. Era pouco, mas era tudo. Não fui herói. Alguns casos foram solucionados, mas a maioria das investigações ainda segue o errante caminho entre Delegacia de Homicídios e Ministério Público, à espera de uma empoeirada prateleira de arquivo onde possa descansar em paz. Ali se abafam os gritos por justiça ecoados pelos parentes e amigos daqueles que passaram a ser apenas mais um nome impresso em uma guia de remoção de cadáver.
“Não precisamos de heróis. Mas escrevo-lhe a verdade, Marielle. Poucos se preocupam com as mortes diárias. São muitas as agruras das investigações policiais em homicídios no Rio de Janeiro. As viaturas, por exemplo, estão sucateadas e sem manutenção. A quantidade de investigadores é pífia diante do volume de vidas humanas ceifadas. As escutas telefônicas, quase uma caixa-preta, muitas vezes inacessíveis a alguns delegados. Algumas armas somem, outras não funcionam. Nunca presenciei deputados ou outros poderosos lutando por equipamentos que permitam encontrar evidências durante a perícia no Instituto Médico-Legal. Aliás, esse mesmo instituto não tem impressora para permitir que uma testemunha seja ouvida imediatamente quando vai liberar o corpo de seu ente querido. Sim, muitos veículos apreendidos ficam abandonados e sem qualquer vigilância. Ouse chamar atenção para este fato e a resposta será sempre a mesma: “É assim mesmo”.
“E, mesmo assim alguns colegas ainda insistem em se apresentarem em impecáveis ternos e gravatas para bradar nos microfones que está tudo em ordem. Heróis? Diante do caos programado, sinto muito em confessar-lhe que a solução de seu caso pressupõe a paralisação de uma infinidade de investigações de outras mortes, pretas e brancas, ricas e pobres, todas covardes. Escolha de Sofia.
“Infelizmente não tive a oportunidade de contribuir para a elucidação de sua covarde morte, e me desculpo por isso. Me aprofundei sobre a árdua e interrompida missão que você com êxito cumpriu por aqui e não pude deixar de escrever-lhe para pedir socorro. Socorro pelas investigações das mortes violentas. Socorro por amor ao ser humano que sei que você, Marielle, ainda nutre onde quer que esteja, mesmo em tempos difíceis de intervenção funeral.
“Com respeito e afeto, Brenno Carnevale Nessimian”.
O Globo
Muito boa essa carta mais não tem. Nada ave
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